Tem macaco novo na Floresta da Tijuca
08/09/2017 10:52

Chico no dia de sua soltura, em setembro de 2015. O bugio fez parte do primeiro grupo levado à Floresta da Tijuca há mais de 200 anos, junto com seus companheiros Maia, Kala e Hanuman. Foto: Luísa Genes
Por mais de 200 anos não se registrava na Floresta da Tijuca a presença de bugios, espécie considerada localmente extinta na cidade do Rio de Janeiro. Até que os bugios Kala, Chico, Hanuman e Maia foram levados à Floresta para mudar esse cenário e se tornar parte da população fundadora da espécie na cidade.
Para quem nunca foi à capital do Estado, o Parque Nacional da Tijuca é uma grande mancha florestal ocupando as partes mais altas do meio da cidade, e pode ser acessada por caminhos cujo ponto em comum é a incrível quantidade de verde e sombra em meio ao clichê da selva de pedra do Rio. Subindo de carro ou a pé, é patente a diferença na pureza do ar e na energia do lugar; cariocas gostam de subir a floresta pelas suas trilhas e cachoeiras, e não é incomum encontrar um ou outro gringo apaixonado pelas florestas tropicais decidido a explorar os verdes eternos de uma das maiores florestas urbanas do mundo.
Algumas pessoas, no entanto, sobem à Floresta toda semana com um propósito bem diferente. Não são turistas, alguns não são cariocas, mas todos compartilham de uma mesma direção: são integrantes e voluntários do Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações (LECP) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O objetivo de subir a floresta toda semana? Soltar e rastrear macacos.
Para restaurar interações ecológicas há muito tempo perdidas e experimentar técnicas de reintrodução na prática, em um laboratório vivo, em 2009 o LECP deu o primeiro passo no que se tornaria um ambicioso projeto de refaunação, ou melhor dizendo, de reconstrução de toda a fauna extinta da Floresta da Tijuca. Esse passo foi a reintrodução da cutia (Dasyprocta leporina) com 31 indivíduos soltos entre 2010 e 2014. A última estimativa, feita em 2015, estimou um crescimento populacional de 100% ao ano e os 35 indivíduos capturados eram todos nascidos na floresta; a população vingou, cresceu e está saudável. A história das cutias merece uma crônica à parte.

Primeiro grupo de bugios reintroduzidos: Hanuman, Kala, Chico e Maia. Os animais permanecem poucas semanas em um cercado para se aclimatarem e ganharem peso antes da soltura. Foto: Luísa Genes
Em 2015, um segundo passo foi dado com a reintrodução do pequeno grupo de quatro bugios ruivos (Alouatta guariba). Esses primatas se alimentam de folhas e frutos, dispersando as sementes das árvores nativas e possibilitando, assim, a contínua regeneração da Floresta. Além disso, suas fezes atraem besouros rola-bostas, que as enterram no solo florestal, preenchendo com nutrientes e tornando o terreno favorável para o crescimento das árvores. Eles são responsáveis por toda uma inimaginável rede de interações ecológicas que até então estava desaparecida do Parque da Tijuca.
Kala, Chico, Hanuman e Maia foram equipados com radiotransmissores para serem localizados na floresta, mas os rádios de alguns deles falharam poucos meses após a soltura. Ainda no ano passado, Chico deixou de ser visualizado após a falha de dois equipamentos.
Ainda antes dessas complicações, Hanuman passou a descer das copas das árvores, onde bugios passam a maior parte do tempo, e a andar pelo chão próximo a estradas recebendo atenção e alimento de visitantes do Parque. Após tentativas mal-sucedidas de evitar que os visitantes se aproximassem do animal, Hanuman teve que ser retirado da Floresta, já que a sua proximidade de estradas e turistas encantados com a oportunidade de alimentar um animal selvagem colocavam em risco sua saúde e vida. Além disso, ele não estava cumprindo nenhum papel ecológico e, assim, perdeu a chance de ficar livre junto a macacos de sua própria espécie.
Kala é uma estrela dessa história, pois faz parte do grupo original que ainda permanece na floresta e é monitorada com sucesso, duas a três vezes na semana. Sabemos que Kala veio do CETAS-RJ, o Centro de Triagem de Animais Silvestres, em Seropédica, mas sua origem antes disso é incerta. Provavelmente era uma bugia selvagem resgatada de algum acidente ou encontro com humanos, por exemplo, atropelamento, um dos males mais frequentes que vitima animais silvestres. De qualquer modo, Kala é arredia, evita contato com os primatas menos peludos do que ela que insistem em caminhar pelas trilhas da Floresta. Uma ótima característica de personalidade para ela e o projeto.
Novos macacos foram levados à floresta: Juvenal, em 2016, que logo foi visto em par com Kala. O casal permanece junto até hoje. César, outro macaco da segunda leva, em 2017, foi levado à floresta em uma tentativa de reintrodução. Infelizmente por ter passado muito tempo em cativeiro antes da reintrodução, teve problemas semelhantes ao de Hanuman após a sua soltura e foi também retirado do Parque.
Um evento inesperado foi a súbita epidemia de febre amarela, que adoeceu moradores do Estado. A vida do bugio-ruivo no Rio de Janeiro não está fácil; esses animais são sensíveis à febre amarela e, para piorar, mais uma vez a ignorância humana leva a comportamentos destrutivos: notícias publicadas de pessoas atacando bugios e outros primatas por medo de serem contaminados com febre amarela demonstra o quão longe chegamos na total dissociação com a natureza: não somos mais parte dela. Em vez disso, é costume vê-la como um problema a ser exterminado.

Kala e o filhote ainda não nomeado, Agosto de 2017. O filhote, ainda pequeno, necessita da presença e aconchego da mãe para sobreviver. Ele se esconde embaixo de sua barriga ou às vezes tenta escalá-la, se segurando com firmeza no pelo de Kala para não despencar das árvores. Foto: Luísa Genes
Não existe, no entanto, motivo para desistir. O projeto, por mais atribulado com problemas internos e externos ao processo da reintrodução, pode dar certo, e faremos o possível para que continue avançando. Mais do que o compromisso com ciência de qualidade, existe um compromisso ético na base da biologia da conservação que move os integrantes do LECP para frear a mancha de destruição que nós humanos espalhamos pelo globo.
Kala e Juvenal continuam na floresta, um lindo casal que nos enche de energias positivas e determinação. E finalmente, mês passado, fomos agraciados com uma incrível notícia: um filhote! É uma grande notícia, e entusiasmo e animação são atitudes muito positivas ao projeto, mas deve-se evitar assediar a mãe e o bebê neste momento delicado. É sempre importante lembrar que não se deve tentar alimentar os macacos e, caso os encontre no meio do mato, prosseguir em silêncio e em cautela, nunca saindo das trilhas para persegui-los.
O que às vezes pode parecer um trabalho de Sísifo, em outros momentos pode ser visto pelos olhos de Eduardo Galeano ao descrever o que é utopia: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” De forma alguma pretendemos representar reintroduções como intermináveis ou utópicas, mas é decerto um trabalho contínuo e complexo, motivado pela inspiração de lutar contra a correnteza da extinção das espécies, enfrentando os desafios e incertezas que isso implica.
Agradecimentos: este projeto não seria possível sem o envolvimento direto de Silvia Bahadian Moreira e Alcides Pissinatti, do Centro de Primatologia, parceiros do projeto e responsáveis pelo cuidado veterinário dos bichos translocados, incluindo quarentena, alimentação e avaliação dos animais; Jeferson Pires, do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS-Estácio), pelo apoio veterinário ao projeto; do e a Ernesto Bastos Viveiros de Castro, diretor do Parque Nacional da Tijuca, pelo apoio e envolvimento com o projeto de reintrodução das cutias e dos bugios.
![]() |
Giuliana Ferrari é bióloga da conservação e uma sonhadora na crise do Antropoceno |
Luísa Genes é ecóloga procurando reverter a defaunação e seus efeitos em processos ecológicos | ![]() |
![]() |
Tomaz Cezimbra, dentre outros atributos, é ecólogo e apaixonado pela natureza |

Chico no dia de sua soltura, em setembro de 2015. O bugio fez parte do primeiro grupo levado à Floresta da Tijuca há mais de 200 anos, junto com seus companheiros Maia, Kala e Hanuman. Foto: Luísa Genes
Por mais de 200 anos não se registrava na Floresta da Tijuca a presença de bugios, espécie considerada localmente extinta na cidade do Rio de Janeiro. Até que os bugios Kala, Chico, Hanuman e Maia foram levados à Floresta para mudar esse cenário e se tornar parte da população fundadora da espécie na cidade.
Para quem nunca foi à capital do Estado, o Parque Nacional da Tijuca é uma grande mancha florestal ocupando as partes mais altas do meio da cidade, e pode ser acessada por caminhos cujo ponto em comum é a incrível quantidade de verde e sombra em meio ao clichê da selva de pedra do Rio. Subindo de carro ou a pé, é patente a diferença na pureza do ar e na energia do lugar; cariocas gostam de subir a floresta pelas suas trilhas e cachoeiras, e não é incomum encontrar um ou outro gringo apaixonado pelas florestas tropicais decidido a explorar os verdes eternos de uma das maiores florestas urbanas do mundo.
Algumas pessoas, no entanto, sobem à Floresta toda semana com um propósito bem diferente. Não são turistas, alguns não são cariocas, mas todos compartilham de uma mesma direção: são integrantes e voluntários do Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações (LECP) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O objetivo de subir a floresta toda semana? Soltar e rastrear macacos.
Para restaurar interações ecológicas há muito tempo perdidas e experimentar técnicas de reintrodução na prática, em um laboratório vivo, em 2009 o LECP deu o primeiro passo no que se tornaria um ambicioso projeto de refaunação, ou melhor dizendo, de reconstrução de toda a fauna extinta da Floresta da Tijuca. Esse passo foi a reintrodução da cutia (Dasyprocta leporina) com 31 indivíduos soltos entre 2010 e 2014. A última estimativa, feita em 2015, estimou um crescimento populacional de 100% ao ano e os 35 indivíduos capturados eram todos nascidos na floresta; a população vingou, cresceu e está saudável. A história das cutias merece uma crônica à parte.

Primeiro grupo de bugios reintroduzidos: Hanuman, Kala, Chico e Maia. Os animais permanecem poucas semanas em um cercado para se aclimatarem e ganharem peso antes da soltura. Foto: Luísa Genes
Em 2015, um segundo passo foi dado com a reintrodução do pequeno grupo de quatro bugios ruivos (Alouatta guariba). Esses primatas se alimentam de folhas e frutos, dispersando as sementes das árvores nativas e possibilitando, assim, a contínua regeneração da Floresta. Além disso, suas fezes atraem besouros rola-bostas, que as enterram no solo florestal, preenchendo com nutrientes e tornando o terreno favorável para o crescimento das árvores. Eles são responsáveis por toda uma inimaginável rede de interações ecológicas que até então estava desaparecida do Parque da Tijuca.
Kala, Chico, Hanuman e Maia foram equipados com radiotransmissores para serem localizados na floresta, mas os rádios de alguns deles falharam poucos meses após a soltura. Ainda no ano passado, Chico deixou de ser visualizado após a falha de dois equipamentos.
Ainda antes dessas complicações, Hanuman passou a descer das copas das árvores, onde bugios passam a maior parte do tempo, e a andar pelo chão próximo a estradas recebendo atenção e alimento de visitantes do Parque. Após tentativas mal-sucedidas de evitar que os visitantes se aproximassem do animal, Hanuman teve que ser retirado da Floresta, já que a sua proximidade de estradas e turistas encantados com a oportunidade de alimentar um animal selvagem colocavam em risco sua saúde e vida. Além disso, ele não estava cumprindo nenhum papel ecológico e, assim, perdeu a chance de ficar livre junto a macacos de sua própria espécie.
Kala é uma estrela dessa história, pois faz parte do grupo original que ainda permanece na floresta e é monitorada com sucesso, duas a três vezes na semana. Sabemos que Kala veio do CETAS-RJ, o Centro de Triagem de Animais Silvestres, em Seropédica, mas sua origem antes disso é incerta. Provavelmente era uma bugia selvagem resgatada de algum acidente ou encontro com humanos, por exemplo, atropelamento, um dos males mais frequentes que vitima animais silvestres. De qualquer modo, Kala é arredia, evita contato com os primatas menos peludos do que ela que insistem em caminhar pelas trilhas da Floresta. Uma ótima característica de personalidade para ela e o projeto.
Novos macacos foram levados à floresta: Juvenal, em 2016, que logo foi visto em par com Kala. O casal permanece junto até hoje. César, outro macaco da segunda leva, em 2017, foi levado à floresta em uma tentativa de reintrodução. Infelizmente por ter passado muito tempo em cativeiro antes da reintrodução, teve problemas semelhantes ao de Hanuman após a sua soltura e foi também retirado do Parque.
Um evento inesperado foi a súbita epidemia de febre amarela, que adoeceu moradores do Estado. A vida do bugio-ruivo no Rio de Janeiro não está fácil; esses animais são sensíveis à febre amarela e, para piorar, mais uma vez a ignorância humana leva a comportamentos destrutivos: notícias publicadas de pessoas atacando bugios e outros primatas por medo de serem contaminados com febre amarela demonstra o quão longe chegamos na total dissociação com a natureza: não somos mais parte dela. Em vez disso, é costume vê-la como um problema a ser exterminado.

Kala e o filhote ainda não nomeado, Agosto de 2017. O filhote, ainda pequeno, necessita da presença e aconchego da mãe para sobreviver. Ele se esconde embaixo de sua barriga ou às vezes tenta escalá-la, se segurando com firmeza no pelo de Kala para não despencar das árvores. Foto: Luísa Genes
Não existe, no entanto, motivo para desistir. O projeto, por mais atribulado com problemas internos e externos ao processo da reintrodução, pode dar certo, e faremos o possível para que continue avançando. Mais do que o compromisso com ciência de qualidade, existe um compromisso ético na base da biologia da conservação que move os integrantes do LECP para frear a mancha de destruição que nós humanos espalhamos pelo globo.
Kala e Juvenal continuam na floresta, um lindo casal que nos enche de energias positivas e determinação. E finalmente, mês passado, fomos agraciados com uma incrível notícia: um filhote! É uma grande notícia, e entusiasmo e animação são atitudes muito positivas ao projeto, mas deve-se evitar assediar a mãe e o bebê neste momento delicado. É sempre importante lembrar que não se deve tentar alimentar os macacos e, caso os encontre no meio do mato, prosseguir em silêncio e em cautela, nunca saindo das trilhas para persegui-los.
O que às vezes pode parecer um trabalho de Sísifo, em outros momentos pode ser visto pelos olhos de Eduardo Galeano ao descrever o que é utopia: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” De forma alguma pretendemos representar reintroduções como intermináveis ou utópicas, mas é decerto um trabalho contínuo e complexo, motivado pela inspiração de lutar contra a correnteza da extinção das espécies, enfrentando os desafios e incertezas que isso implica.
Agradecimentos: este projeto não seria possível sem o envolvimento direto de Silvia Bahadian Moreira e Alcides Pissinatti, do Centro de Primatologia, parceiros do projeto e responsáveis pelo cuidado veterinário dos bichos translocados, incluindo quarentena, alimentação e avaliação dos animais; Jeferson Pires, do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS-Estácio), pelo apoio veterinário ao projeto; do e a Ernesto Bastos Viveiros de Castro, diretor do Parque Nacional da Tijuca, pelo apoio e envolvimento com o projeto de reintrodução das cutias e dos bugios.
![]() |
Giuliana Ferrari é bióloga da conservação e uma sonhadora na crise do Antropoceno |
Luísa Genes é ecóloga procurando reverter a defaunação e seus efeitos em processos ecológicos | ![]() |
![]() |
Tomaz Cezimbra, dentre outros atributos, é ecólogo e apaixonado pela natureza |