Paquistanesas derrubam barreiras e treinam boxe em busca de igualdade.

06/04/2016 09:49

Ser mulher no Paquistão não é fácil. Numa sociedade patriarcal e de costumes tribais, governada pela sharia - a lei do islã -, por muitas vezes elas perdem o direito de decidir sobre casamento, trabalho e estudos. De acordo com as Nações Unidas, só em 2014 mais de mil foram mortas nos chamados "crimes de honra". Os dados são assustadores, mas pouco mais de uma dúzia de meninas usou o esporte para mostrar que a vida pode ser diferente. Em outubro do ano passado, no distrito de Lyari, na cidade de Karachi, uma das mais populosas do país, garotas entre 8 e 17 anos quebraram barreiras milenares. Conseguiram, com a anuência do estado de Sindh, o direito de treinarem boxe como fazem os meninos. 

- A questão sobre a igualdade de sexos ainda existe aqui, mas alguns dos intelectuais da cidade reconhecem que as mulheres também podem fazer o melhor para a sua carreira, cultura e o país da mesma forma que os homens. As mulheres podem viver, desde que permaneçam respeitando às leis islâmicas. Esta é a nossa missão, eliminar essa diferença pelo melhor desempenho no âmbito das regras religiosas e culturais - diz a agora boxeadora Misbah, de 17 anos.

Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Meninas da Pak Shaheen Boxing Club posam para foto com os punhos cerrados (Foto: Reuters)

As cabeças são cobertas com véus, os vestidos longos, até os pés. Os sapatos fechados. Na mão, as bandagens cobrem as tatuagens de henna. O país que no fim do mês passado sofreu atentado terrorista em Lahore, com a morte de dezenas, vê a igualdade de gênero acontecer na academia Pak Shaheen Boxing Club. Foi lá que o técnico Younus Qambrani passou para elas os primeiros jabs e diretos, da mesma forma como fez com seu irmão Rashid Qambrani, que nas Olimpíadas de Atlanta 1996 foi treinado por ele. Tudo começou com Khadijah, de 16 anos. Ao encontrar Nadir Kachi, de 18 anos, e campeão local de boxe, ela pediu que ele a treinasse, já que não havia conseguido encontrar uma academia que a aceitasse. Nadir a levou até Younus, que no início teve medo.

Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Misbah durante treino no Paquistão (Foto: Reuters)

- Tivemos grandes problemas para colocar as mulheres no boxe por conta da cultura do Paquistão e fiquei com medo da reação adversa do povo.  Eu treinei as minhas filhas, Anum e Urooj, desde a infância. Elas duas mostraram interesse em serem boxeadoras profissionais como seus tios Majid Qambrani e Rashid Qambrani. Além das minhas duas filhas, outras meninas da vizinhança mostravam interesse em aprender o boxe, mas eu não tinha condições de começar o os treinos por conta de toda a condição cultural do país - explica Younus.

Asghar Baloch, da Associação de Boxe do Paquistão, explica que o país já teve boxeadoras mulheres, mas nunca houve um lugar em que elas pudessem treinar juntas, sem enfrentar preconceitos. Em fevereiro, elas participaram de um torneio de boxe nas ruas, acompanhada de perto por torcedores homens.

- Pugilistas femininas já participaram de competições em todo o mundo, mas desde que a Federação de Boxe do Paquistão foi criada, em 1948, nunca tivemos um programa para mulheres, afinal de contas, estamos na República Islâmica do Paquistão - disse Asghar.

DIPLOMACIA PELAS MENINAS

A saída foi diplomática. Seu irmão, Hussain Qambrani, foi o cérebro. Bancário aposentado desde 2013 e trabalhando com voluntariado, ele assumiu a presidência da Pak Shaheen Boxing Club e foi atrás das autoridades, intelectuais locais e líderes religiosos para que as meninas pudessem treinar em paz, sem qualquer reprovação. Depois das conversas, reuniu-se com  Asghar Baloch, secretário da Associação de Boxe da cidade de Sindh. Com todos os avais em mãos, Hussain e Younus deram as boas novas, receberam US$ 1.422 (R$ 5.600) para comprar luvas e equipamentos através da entidade e começaram os treinos com as meninas.

Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Younus Qambrani passa a técnica do boxe para a pequena Arisha, de 11 anos (Foto: Reuters)

 

- Esse foi o primeiro acampamento feminino da história. Hussain enfrentou e venceu todas as barreiras e convenceu algumas das pessoas influentes da vizinhança que isso era importante para o futuro das meninas. Nenhuma reação adversa chegou ainda, mas não podemos dizer o que vai acontecer no futuro. Estamos lidando com códigos de moral e ética - explica Younus, que também teve a presença das filhas Anum, 18 anos, e Urooj, 16 anos, nos treinos.

Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Academia Pak Shaheen Boxing Club fica localizada em zona humilde de Karachi (Foto: Reuters)

 

Os treinos foram um sucesso e até hoje permanecem. Atualmente, 14 meninas, entre 11 e 18 anos, treinam na Pak Shaheen Boxing Club. Algumas para aprender autodefesa, outras com o sonho de tornarem-se boxeadoras profissionais e até ir às Olimpíadas, como Younus conseguiu fazer com Rashid em Atlanta 1996.

- O boxe é difícil e duro no começo, mas essas dificuldades agora fazem parte do dia a dia, da minha rotina. No início, meus pais foram hesitantes, mas quando viram a seriedade e o caráter do presidente do clube, o Hussain Qambrani, e do técnico Younus Qambrani, eles aceitaram que eu treinasse e me deram toda a confiança. Não quero ser vista como uma pessoa fraca no mundo. O boxe é um esporte muito duro, mas é excelente para o corpo e me dá muita confiança. Eu me inspiro na Laila Ali (filha de Muhammad Ali) - garante Azmeena, de 16 anos.

Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Tabia, de 12 anos, calça os tênis para o treino durante o camp de outubro (Foto: Reuters)

 

REGRAS DO ISLÃ SÃO RESPEITADAS

Os treinos femininos não trouxeram problemas para as meninas na sociedade paquistanesa até o momento. Younus Qambrani é respeitado em Karachi pela tradição da família no pugilismo. Todos os irmãos, primos, filhos e netos treinam boxe ou já foram atletas profissionais. Para não quebrar qualquer regra do islã e preservar as boxeadoras, elas treinam com as vestimentas que vivem no dia a dia. Essa, inclusive, é uma das novas empreitadas que Hussain e Younus querem levar adiante. Eles pretendem entrar em contato com a Associação Internacional de Boxe (Aiba), entidades do esporte no Paquistão e outras religiosas, pedindo que as boxeadoras muçulmanas possam lutar com véus e roupas apropriadas de acordo com a religião.

v (Foto: Reuters)Nadir Kachi protege o rosto de Urooj, de 16 anos (Foto: Reuters)

 

- O Islã dá direitos iguais a homens e mulheres e todos estão sujeitos ao cumprimento da ideologia islâmica. Nosso clube mantém isso rigorosamente. Nosso presidente Hussain Qambrani também está considerando escrever uma carta para a Aiba e a Confederação Asiática de Boxe para o relaxamento no código de vestimenta para as mulheres pugilistas muçulmanas, para que possam lutar como fazem as mulheres muçulmanas no judô, taekwondo, karatê e outros esportes - comenta o treinador.

Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Anum quer ser uma boxeadora profissional
(Foto: Reuters)

Anum, filha de Younus, quer brilhar como seus tios no boxe profissional. Entre a autodefesa e o alto rendimento, ela fica com a segunda opção.

- Eu quero brilhar no esporte e ver o nome do meu país ganhando troféus e medalhas no mundo do boxe feminino. Eu e minhas colegas estamos muito mais interessadas em conquistar medalhas do que outra coisa. Meus colegas de escola estão muito surpresos e felizes me vendo como uma boxeadora. No começo, estranhos nas ruas tentaram criar barreiras, mas agora eles têm medo dos meus socos e ficam longe de mim - brinca a boxeadora.

Younus é orgulhoso das meninas, mas garante que elas têm um defeito que os homens não compartilham: falam demais durante os treinos.

-  As mulheres do Paquistão são talentosas e estão intensamente interessadas em aprender o boxe em nível mundial. As meninas do camp de iniciantes estão dispostas a chegar ao boxe internacional entre as mulheres. Elas também sabem que o boxe é uma arma eficaz de autodefesa. Os homens já compreenderam bem que as mulheres não são mais fracas do que os eles no campo dos esportes. Mas, as meninas pugilistas falam demais. De qualquer forma, estamos ensinando o boxe para que tenham motivação nos seus socos e não nas suas línguas - diz Qambrani.

Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Meninas durante luta de boxe em Karachi, no Paquistão, em fevereiro (Foto: Reuters)
Boxe feminino, Karachi, Paquistão (Foto: Reuters)Homens acompanham das arquibancadas o torneio feminino de boxe, em fevereiro (Foto: Reuters)